terça-feira, 28 de outubro de 2008

Aula 02

Minha respiração está ofegante. O coração bate depressa, me sinto esgotado. A cabeça a mil, como uma prova valendo o ano. O vento toca minha face, e me invade um sentimento de completude. Sim, a cabeça a mil, voz e corpo, tudo transpira existência. O movimento das mãos tem um poder nunca visto, o discurso se inflama, o corpo emana inconsciente uma vivacidade sempre buscada: só percebemos a felicidade depois que passamos por ela, inconscientes de estar-se lado a lado com o que importa. Ah, ergo o volume do carro e deixo Zombie invadir meu ser, pertencer a mim – ou seria eu o invasor, excessivo, pleno, transbordante? O doce não seria tão doce sem o amargo, o silêncio não teria valor sem um turbilhão para precedê-lo...

Sim, sim, é muito conceito, e todos eles não alcançam-me, simplesmente. Por mais que me esforce para enquadrar o que sinto em palavras, as palavras parecem não bastar. Poema, não mais que um poema; poema, e toda a linguagem que se reinventa, e todo sentido se reconstrói, e toda contingência se faz presente! E Drummond me valeu, sem que eu esperasse, sem que eu quisesse, sem que eu visasse; tomou conta de mim:

“Sua cor não se percebe.

Sua pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.”

Sim, a flor que pintamos em nossa mente, de cores e cores, pétalas e talos, nomes e perfumes: ela não é nada! É retrato mal feito do que é: a vivacidade de uma flor que nunca, nunca, é superada por uma idéia. Sim, a flor no asfalto é feia. E nela há toda a beleza possível: o quase milagre da existência, toda persuasão que me transtorna, toda uma existência que se excede. Emana existência, a flor sem cores e sem nome. Não há lógica, não há linguagem, não há metafísica que transcenda a condição de existir – tudo depende e se volta para a imersão que é o homem no mundo.

- Por mais que você tente me definir: eu, ou você, somos homens. Nunca, nunca tua definição poderá me abarcar. Nós somos maiores que tudo isso, entenda. Nenhum esforço teu fará de mim algo que se resuma em uma idéia, se eu não quiser: e se quero, a escolha de ser como me pensas ainda é minha!

...

Ele acabara a explicação. Os alunos o olhavam, silenciosos. Eles pegaram suas canetas e, orquestrados, baixaram suas cabeças e escreveram. O professor se virou, o ruído dos lápis a percorrer o papel, a angústia para preencher um sentido. Sim, vocês são livres meus caros, pensava ele; vocês têm responsabilidade sobre suas vidas, e não há outra implicação possível desta constatação que não seja em vivê-la da melhor maneira possível.

Pela primeira vez, ele teve certeza de que entenderam. Não era preciso dizer mais nada.

Aula 01

- Professor, mas se Deus não existe, como que as coisas foram criadas? É claro que ele existe então!
- Não para Sartre... Para você compreender o pensamento dele você não precisa de Deus, entende? Simplesmente não é importante.
- E de onde vieram as coisas então?
- Não sei, de algum lugar... quem sabe um dia a ciência explica né? O que importa, para Sartre, é o que fazemos aqui, vivos, os que acreditam em Deus e os que não acreditam. Deus simplesmente não entra aqui.

E assim começou a aula. Que deus é um conceito superado, vá lá. Que a fé de cada um não é derrubada por nenhuma filosofia, outros tantos. Mas ia ele explicar tudo em 50 minutos? Não dava; então o lance era reduzir: que deus simplesmente não esteja no meio do assunto, Sartre é ateu e pronto! Afinal, tinha que passar pelo realismo de Aristóteles, o idealismo cartesiano, dar uma pincelada no conceito de fenômeno de Kant e voilà: a Sartre, por fim. Bom, isso tudo cabia em uma aula de 50 minutos? Só tentando! Resultado: aprendiz de professor esgotado; alunos se perguntado em que Sartre entrava na história, e, por incrível que pareça, uma alegria.
Alegria de estar ali, tentando passar o melhor do pensamento que o homem já produziu. Alegria de ver os alunos se aceitando animais racionais, mas compreendendo que a essência sempre é um problema; concordando com a sensibilidade como fonte de ciência, e ficando ferrados com o velho x sobre infinito que impede a universalidade desta ciência. Sensação boa de ter alguém afirmando “então o homem é o nada!”, mesmo que ele não pudesse compreender totalmente o que abarca esta frase. E descobrir que metade dos seus alunos (mesmo que por uma aula) assiste Naruto? Não tem preço!
Mas voltando ao balanço do dia, foi a primeira aula: se pecou-se, pecou-se pelo excesso, nada que uma boa conversa e uma dose de tempo não resolvam. Ah, o tempo: “se eu fosse o professor de vocês...”, me peguei dizendo, “até falava um pouquinho sobre deus”. Valeu ainda o elogio do estagiário da Puc, orgulho bobo que achei que não pudesse sentir: sim, carrego comigo, para o bem ou para o mal, cada professor desses cinco anos de graduação, e hoje ficou claro o quanto isso é verdade.

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Há uma hora antes da aula, me via na minha própria turma debatendo a educação: qualidade em detrimento da quantidade e vice versa, dificuldade de trabalho com alunos mal (obrigado serzinho) educados, salários que não condizem com a dignidade da carreira... fundo do poço e inferno meio que se encontraram naquela discussão. Afinal, porque cada um estava ali, sentado, aprendendo um monte de conteúdos para no fim enfrentar uma realidade longe da ideal? Meu caro Thiago diria que por pura burrice, dada nossas últimas conversas! É trabalhoso pacas traduzir filosofia para uma turma de adolescentes – simplificar sempre é difícil -, você ganha mau por este trabalho, é tido como o “alternativo” da família por não ter escolhido uma profissão decente – porque médicos e advogados aprenderam por osmose, sendo, portanto, quase deuses – e tem grandes chances de perder os ideais que te levaram ao magistério.
Em suma, ser professor, ainda mais de filosofia, que não serve para nada, é quase um pedido de auto-ajuda: eu tenho problemas! Naquela turma, portanto, estavam os futuros infelizes do mundo – cara, aqui eu to falando igual ao Rudah.
E o engraçado é que estavam lá, apesar do panorama. Alunos ruins se conquistam, aulas ruins se melhoram, o salário um dia sobe, está na nossa mão mudar... Otimismo? Bom, já disse Merleau-Ponty que as justificativas não são nada se não há uma vontade que as preceda. Por que raios queremos ser professores então? Porque queremos, escolhemos assim, e ponto. Aos problemas que aparecerem depois da escolha, dê-se um jeito, oras.
Contraditório? Talvez, ao menos se aqueles que se propõem a ser professores se contentam com um contracheque e um título que lhe garantam viver acomodadamente e reclamar do mundo. Mas estes não são mestres, são somente carteiras de trabalho assinadas com profissão “professor”. Mestre? A vida não é rosa, e nem todos podem aceitar sinceramente este título. Mas a todos aqueles que se proporam a exercer o magistério, seja-lhes esta a meta: ser um mestre, aquele que educa, que forma, que faz surgir no aluno o melhor que a humanidade lhe confiou. É possível que não dê certo? Sim, quase provável né? É possível fazer dar certo? Que se acredite nisso, ao menos.