quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A Holanda e a maconha

Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.


A relação da Holanda com a maconha é surpreendente. Trata-se provavelmente do único país do mundo em que um chefe de polícia vai a público defender as virtudes da Cannabis. Chega a sugerir que os "hooligans" ingleses, a herança bárbara de Albion, não provocaram grandes incidentes durante a Eurocopa disputada nos Países Baixos, porque, em vez de se embebedar-se, fartaram-se em vapores fumívomos. A Holanda proibiu o álcool nos estádios, mas liberou o consumo de maconha e haxixe.

A correlação entre abuso de álcool e episódios de violência está de fato bem documentada na literatura médica. Em relação à Cannabis, a coisa é mais complicada. Usuários em geral louvam suas propriedades tranquilizantes e alguns estudos, inconclusivos, procuram até ligá-la à síndrome amotivacional. De qualquer forma, parece haver alguma licença poética em conferir-lhe uma "vis pacificatoria" ("virtude pacificadora"). Na medida em que o cânhamo, como o álcool, provoca euforia, pode levar alguém a sentir-se mais poderoso do que realmente é e dar uns tapas na mulher ou provocar a torcida adversária. Aqui, mais do que a droga, prevalecem o indivíduo e a situação.

Vale destacar que a palavra "assassino" vem do árabe "hashishiyn", a designação de uma seita ismaelita xiita da Síria do século 12, cujos integrantes fumavam haxixe (daí o nome "hashishiyn") e depois, em meio a visões do paraíso, matavam seus inimigos com notável habilidade.
O fato é que há na Europa, como a Folha mostrou no último domingo, uma tendência liberalizante nas políticas antidrogas, liderada pela Holanda e pela Suíça. O fracasso da abordagem repressiva é eloquente. Nos EUA, o país que mais enfatiza essa estratégia, dos 2 milhões de encarcerados no sistema penal, 23% foram condenados por crimes relacionados a drogas, a metade por posse. Os bilhões de dólares gastos anualmente não se traduzem em diminuição do consumo, que só faz aumentar.

Descriminar as drogas não é um plano de perigosos comunistas para solapar as bases da família e da propriedade. A idéia é defendida, entre outros, por economistas da Escola de Chicago, espécie de meca do ultraliberalismo.

Na análise destes solertes cientistas, existe uma espécie de imposto associado ao ilícito. Sendo as drogas ilegais, pode-se cobrar mais por elas. Daí o imenso poder financeiro dos traficantes e toda a violência e corrupção que lhes podem ser imputadas. Na legalidade, os entorpecentes poderiam representar um item de despesa a menos e uma fonte a mais de recursos para o Estado, eventualmente até para combater a epidemia mais adequadamente.

Essas teses são muito sedutoras, mas, se me fosse dado o poder de decidir sobre a descriminação, pensaria 327 vezes antes de adotá-la.
Para ter uma idéia do problema que se poderia estar criando, vale a pena dar uma olhada em algumas estatísticas. Uso as americanas que são mais confiáveis. Lá, cerca de 90% da população consome álcool; de 10% a 20% dos homens e de 3% a 10% das mulheres desenvolvem problemas crônicos relacionados ao abuso dessa substância. A cocaína é utilizada com frequência mensal por apenas 0,6% dos norte-americanos (dado de 1993). Não é preciso ser nenhum Einstein para concluir que uma eventual liberação aumentaria a quantidade de usuários e, consequentemente, a de pessoas que desenvolvem dependência. E há uma diferença significativa entre um problema que atinge menos de 1% da população e outro que pode afetar 20%. O indivíduo saber que a droga faz mal à saúde é uma barreira frágil, como se vê no caso dos fumantes (20% dos brasileiros, segundo o IBGE, entre os quais modestamente me incluo).

Não pretendo, com esses números, sugerir que a estratégia liberalizante européia está errada. Acho até que está certa. Do ponto de vista exclusivo da saúde pública, liberar as drogas provavelmente é uma "defaecatio maxima" ("baita cagada", numa tradução livre). Mas, diferentemente do que impõe a mentalidade higienista hodierna, há aqui uma questão filosófica que não é menos importante: é função do Estado impedir que cidadãos no pleno gozo de suas capacidades jurídicas e mentais façam mal a si mesmos? Sinceramente, acho que não.






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