A coluna de hoje será agitada. Começo traindo a classe. Embora eu tenha formação acadêmica na área de filosofia, vejo com desconfiança a recém-sancionada lei que torna obrigatório o ensino desta matéria e da sociologia nas três séries do ciclo médio em todo o país. A mudança, que não chega a ser uma revolução, pois as duas disciplinas já vinham sendo paulatinamente reincorporadas à rede, parece-me servir mais aos interesses de sindicatos e a um certo populismo educacional do que à causa do ensino propriamente dita.
Antes de prosseguir eu gostaria de desfazer alguns enganos comuns. Não, a filosofia não "ensina a pensar" nem a "ser ético". Trata-se de uma disciplina como outra qualquer. O aluno é apresentado a um universo conceitual específico e, depois, nas provas e trabalhos, instado a mostrar como lida com as novas "ferramentas". Não há mágica nenhuma. Não é porque o estudante vai ler textos que refletem sobre a aquisição do conhecimento, por exemplo, que se tornará mais apto a conhecer. De modo análogo, estudar como determinados autores pensaram a moral e a ética não é em absoluto garantia de que o aluno se tornará um ser mais moral e mais ético.
Concordo que, pelo menos no ciclo médio, é preciso alargar os horizontes do aluno. Não dá para ficar só ensinando português e matemática e as matérias "clássicas" como física, biologia, história. É preciso passar também algumas referências relevantes da cultura e da ciência ocidentais. A filosofia é uma boa candidata, mas está longe de ser a única. Por que não história da arte, direito, estatística, psicologia, medicina? O melhor, creio, seria deixar para cada escola definir o que convém mais a seu público. É esse espírito anarco-autonomista, que constava da redação original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a popular LDB, que vem sendo revertido nos últimos anos.
Em termos práticos, a nova lei não muda muita coisa. Desde 2006 uma resolução do Conselho Nacional de Educação já obriga as escolas de ensino médio a ministrar as duas matérias. É claro que uma lei é mais forte do que uma resolução, e isso poderá levar os conselhos estaduais que vinham enrolando na implantação da norma a andar mais depressa. A principal alteração está na especificação de que as disciplinas devem ser oferecidas nas três séries do ensino médio. Pela resolução bastava uma. É aí que reside a esperteza dos sindicatos de sociólogos, que viram sua reserva de mercado multiplicar por três. Eu não saberia explicar por que os filósofos, que são provavelmente a única categoria sem representação sindical, também entraram na festa. Imagino que isso se deva ao fato de a disciplina, por razões que a própria razão desconhece, ainda gozar de um prestígio quase reverencial.
A turma da direita já saiu gritando que o novo diploma vai institucionalizar a doutrinação esquerdista. É um risco, admito. Mas há também um outro que eles não apontam: como as faculdades de filosofia dificilmente serão capazes de fornecer a legião de professores necessária para suprir a demanda, as escolas tenderão a recrutar seus docentes pela habilitação mais próxima da filosofia, que é a teologia. E se há algo tão ruim quanto um exército de marxistas vulgares armados de discursos antiimperialistas é uma hoste de padres brandindo catecismos. Pior mesmo só se forem clérigos disparando teologia da libertação, que junta as mais capengas categorias do marxismo ao mais caricatural reacionarismo católico, mas deixemos esse cenário apocalíptico de lado.
Meu propósito central nesta coluna é mostrar que a volta da filosofia e da sociologia ao ciclo básico não passa nem perto de ser uma solução para a grave crise que a educação enfrenta hoje.
O regime militar foi criticado, com razão, por ter eliminado, em 1971, as duas disciplinas do então colegial. Fê-lo por razões muito mais pragmáticas do que teóricas: essas matérias agregavam um número desproporcionalmente grande de professores com idéias de esquerda. É um erro, entretanto, considerar, como alguns ainda o fazem, que a extinção da filosofia e da sociologia foi a responsável pelo ocaso do ensino público que se percebe desde então. Um candidato muito mais verossímil é a massificação da escola. Entre os anos 30 --a era dourada do ensino público-- e os 90, o número de alunos da rede oficial aumentou nada menos do que 20 vezes. Os recursos aplicados cresceram num proporção bem menor.
O resultado foi duplamente perverso. De um lado, a incorporação de grandes contingentes de alunos do estrato social mais baixo significou uma queda na qualidade. Esse, entretanto, era um efeito esperado e que deveria ser transitório. De outro, a rápida ampliação da rede sem um aumento correspondente dos recursos investidos levou a uma espécie de proletarização do professorado. Esse fato, tomado por si só, tampouco precisaria ser um grande problema. A correlação entre salário dos mestres e desempenho dos discípulos é menos cristalina do que supõem os sindicatos.
Ocorre que essas ocorrências não se deram de forma isolada. Esses dois movimentos se reforçaram e, somados a outros que não cabe aqui mencionar, acabaram por provocar uma notável corrosão do prestígio do magistério. Até algumas décadas atrás, o professor, ao lado do padre e do juiz, compunha o rol das "autoridades" de uma cidade do interior. Hoje, os mestres são muitas vezes vistos como o "tipo ideal" do funcionário público indolente, mais preocupado em arrancar pequenas vantagens do Estado do que em cumprir sua obrigação de educar alunos.
É uma generalização e, como toda generalização, essencialmente injusta, mas não inteiramente desprovida de base empírica. Como a categoria de professores de escolas públicas amargou décadas sem obter aumentos salariais significativos, foi se contentando com pequenas concessões que lhe eram lançadas como migalhas pelos governantes. Foi assim que se acumularam, por exemplo, 19 dispositivos legais que permitem ao mestre faltar sem sofrer redução salarial. No Estado de São Paulo, professores têm abonadas até 32 ausências por ano (um mês extra de férias!, diriam alguns). O reflexo dessa política na rede oficial se mede numa taxa de absenteísmo de 12,8%, contra menos de 1% em escolas privadas. Se isso não contribui para a fama de vagabundo, é difícil imaginar o que possa fazê-lo.
É claro que não sou tradicionalista a ponto de chorar o prestígio perdido apenas pelo prestígio. A minha hipótese é que a desvalorização social do magistério é uma das principais causas do desastre educacional brasileiro. Não se trata de mero achismo. Como mostrou reportagem da Folha (íntegra disponível para assinantes do UOL e do jornal) desta segunda-feira, estudo encomendado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro Brasil mostra que apenas 5% dos melhores alunos que se formam no ensino médio desejam trabalhar como docentes da educação básica. Dos que ficaram entre os 20% mais bem colocados no Enem 2005 (Exame Nacional do Ensino Médio), 31% querem trabalhar na área da saúde e 18% se inclinam para a engenharia.
Isso significa que estamos recrutando nosso professorado entre os piores alunos, o que, acreditem, faz a diferença. Exaustivo trabalho da consultoria McKinsey (íntegra disponível para assinantes do UOL e do jornal) de comparação de vários sistemas de educação do mundo, publicado no ano passado, revela que a primeira das três variáveis que mais se destacam nas redes de ponta é "escolher as melhores pessoas para se tornarem professores".
Na Coréia do Sul, por exemplo, a primeira colocada no ranking de leitura no Pisa 2006 (exame internacional), os futuros professores são obrigatoriamente escolhidos entre os 5% que se saem melhor na prova nacional para ingresso no ensino superior --o "vestibular" deles. Na Finlândia, segunda no mesmo ranking, os professores são selecionados entre os "top ten".
Trocando em miúdos, o "segredo" do ensino de qualidade é a soma de um truísmo (bons professores formam bons alunos) com uma obviedade (para recrutar os melhores profissionais, é preciso oferecer uma carreira atrativa, senão financeiramente, ao menos em termos de valorização social). É exatamente o que não estamos fazendo.
E não me parece que a introdução da filosofia e da sociologia em regime obrigatório e intensivo contribuam para reverter nossa penúria pedagógica. Essa é antes uma manobra diversionista, mais uma compensação a sindicatos que ficaram por algum tempo de fora do butim. Uma mudança de verdade implicaria redefinir quais são as carreiras com e sem prestígio no país. E isso envolveria redesenhar os feudos já estabelecidos pela república das corporações em que o Brasil tristemente se converteu.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
sexta-feira, 13 de junho de 2008
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