Ai, ai.... o problema ético sempre é um problema! Porque que não instituímos logo a verdade universal via decreto de cunho liberal? Seria tão mais... mais... puts, não seria nada.... faiz parte...
ética é um problema
"O mundo é um lugar melhor sem este homem. Ele era um matador de sangue-frio, um assassino em larga escala e um terrorista responsável pela morte de inúmeros inocentes. De um modo ou de outro, ele foi levado à justiça".
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"Com orgulho e honra, anunciamos o martírio de um grande líder da resistência que se juntou à procissão de mártires da resistência islâmica. O mártir, que sua alma descanse em paz, foi alvo dos sionistas por mais de 20 anos".
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A primeira declaração é de Sean McCormack, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA. Já a segunda é trecho de um boletim extraordinário lido na rede de TV "Al Manar", do grupo xiita Hizbullah. O difícil aqui é acreditar que ambas as notas se refiram à morte da mesma pessoa, Imad Mughniyah, assassinado numa explosão em Damasco na semana passada.
De minha parte, acho que a descrição feita pelo representante do governo norte-americano se aproxima mais da realidade. Mughniyah, afinal, foi responsável por alguns dos mais mortíferos atentados anteriores ao 11 de Setembro. Suas "obras", que custaram a vida a várias centenas de pessoas, incluem os ataques ao quartel dos marines dos EUA e ao acampamento de capacetes-azuis franceses em Beirute no início dos anos 80, bem como as explosões da embaixada israelense em Buenos Aires em 1992 e da Associação Mútua Israelense-Argentina (Amia) na mesma cidade dois anos depois. E, na minha modesta opinião, indivíduos que plantam bombas onde funcionam creches, como no caso da Amia, são mais precisamente retratados como terroristas do que como combatentes da liberdade. Se ele tivesse parado nos soldados, talvez o pudéssemos considerar um guerrilheiro ou coisa semelhante. Mas não parou.
Só que, para meus propósitos na coluna de hoje, não interessa tanto o que eu, você, George W. Bush ou Osama bin Laden pensemos sobre Mughniyah, mas sim o fato de que suas ações comportam interpretações diametralmente opostas. Ele pode ser visto como um grande celerado ou como um herói, como um terrorista sanguinário, ou como um homem que luta pelo que é justo. Imaginando que exista uma realidade mais ou menos unívoca, como isso é possível?
A solução mais fácil para o problema é declarar os que pensam diferentemente de nós como psicopatas e partir para o ataque. É o que muitos fazem --literalmente. A tática é boa tanto para promover "guerras de libertação" como para arregimentar mais "mártires", mas ela também faz com que deixemos de ver a questão em sua completude, além de obnubilar algumas interessantes características da psique humana.
É um virtual consenso entre muçulmanos (e não só entre eles) que os palestinos têm o direito de pegar em armas para combater o invasor israelense. Para muitos, a ocupação justifica ações como as de Mughniyah. A menos que consideremos que cerca de 1,5 bilhão de terráqueos, ou pouco mais de 20% da população mundial, tem graves problemas psiquiátricos, é forçoso reconhecer que a solução de declarar o adversário louco e atacá-lo é inadequada. A pergunta então passa a ser: quais os mecanismos que permitem a pessoas mentalmente sãs fazer leituras tão divergentes dos mesmos eventos? E a resposta é: a moral.
Como já coloquei numa coluna anterior, parece haver um instinto moral comum a toda humanidade. Não há cultura que não valorize, por exemplo, a idéia de justiça ou a noção de que, como regra geral, a vida de outros seres humanos deve ser preservada. As diferenças entre povos e indivíduos vão aparecer quando se tenta definir o que é justiça ou em quais condições a norma de preservação da vida é suspensa e se torna lícito (ou mesmo obrigatório) matar um semelhante. Não se tem notícia, por exemplo, de sociedade que puna como assassinos seus próprios soldados, por mais inimigos que eles tenham matado. Normalmente os valorosos militares recebem medalhas por fazer o que, sob outras circunstâncias, os levaria à cadeia.
Por quê? Bem, em todas as guerras o "culpado" é sempre o inimigo. Ele invariavelmente lança uma grave e injustificada injúria que nos obriga a tomar em armas para repeli-la. Aqui, as noções de agressão imotivada e de pertencimento a uma comunidade falam mais alto que a idéia de equanimidade, pela qual todos os homens têm direito à vida. E isso leva à suspensão do "não matarás", ainda que cada soldado inimigo tombado possa ser individualmente inocente.
O princípio básico é que temos vários tipos de impulsos morais, que podem ser contrabalançados uns pelos outros e até certo ponto também moldados por racionalizações. O psicólogo Jonathan Haidt propõe a existência de cinco núcleos de sentimentos morais: agressão, justiça (ou equanimidade), comunidade (ou lealdade ao grupo), autoridade e pureza, que constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. É a partir de combinações entre esses grupos que se forjariam os mapas morais dos indivíduos e tribos.
Embora quase todas as pessoas, quando diretamente questionadas, condenem o homicídio, serão capazes de justificá-lo em determinadas condições. Assim, é relativamente fácil fabricar um inimigo que pode e deve ser eliminado. Bin Laden produz seu séqüito de homens-bomba ensinando-lhes desde pequeninos nas "madrassat" que o Ocidente agrediu e agride de forma injusta a "umma", a comunidade islâmica, com a criação do Estado de Israel em 1948 e as guerras que se seguiram. Mais do que isso, o Ocidente judaico-cristão também é culpado de não reconhecer a autoridade do profeta Maomé e, pior, ainda conspurcou-se a pureza muçulmana com a presença de tropas infiéis no território sagrado da Arábia Saudita. É um discurso relativamente simples que faz apelo a todas as cinco matrizes morais.
É claro que nem todos os muçulmanos são presa fácil da doutrinação da Al Qaeda. O fato a ressaltar é que a doutrinação é possível porque tais elementos existem, e são em alguma medida chancelados até mesmo pelos mais moderados membros da comunidade. Por mais estranho que pareça a nossas convicções, pessoas que apóiam atitudes para nós imorais podem estar em seu íntimo tão convencidas quanto nós de que a "razão moral" está do lado delas. Isso, evidentemente, não vale apenas para muçulmanos que flertam com o Hizbullah. Mesmo figuras que a história consagrou como monstros, a exemplo de Hitler ou Pol Pot, muito provavelmente julgavam estar cumprindo seu dever moral.
Não pretendo, com essa breve análise, introduzir o relativismo radical e justificar o nazismo ou atentados terroristas com base numa legítima diferença de perspectivas. Tenho para mim que genocídios e ataques aleatórios à população civil são sempre profundamente imorais, não importando quem os realize nem por qual motivo. Mas, se não procurarmos entender e levar em conta a disparidade das contextualizações morais, nenhum diálogo será possível.
O problema com o Oriente Médio é que a lógica tribal e a religião acrescentam aos vários conflitos ali atuantes uma sobrecarga dos sentimentos de pureza e lealdade comunitária, que tendem a ser mais viscerais e resistentes à racionalização do que as noções de agressão e justiça envolvidas em guerras "normais".
Se há uma chance de promover a paz na região, ela passa retirar as disputas do domínio da moral e levá-las para o campo da racionalidade, o único idioma comum entre todos os homens, ainda que muitos insistam em ignorá-lo.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.E-mail: helio@folhasp.com.br
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
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