quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Um lógico na ilha da fantasia

Chico's Bar editora e Confederadas traz diretamente do Estado de São Paulo uma entrevista de um dos maiores nomes da atualidade. Assim...


Pensador brasileiro com mais reconhecimento no exterior, Newton da Costa tem seus livros reeditados





Daniel Piza




No final dos anos 50, Newton da Costa já era formado em Engenharia e Matemática e colaborador de publicações francesas quando procurou o reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) com uma proposta. Queria trazer professores estrangeiros, como seu mentor Marcel Guillaume, para ajudar a montar um centro de pesquisa de lógica e matemática em Curitiba. O reitor vetou o projeto e justificou: “Pode citar qualquer especialista estrangeiro em qualquer assunto, e lhe dou o nome de alguém aqui melhor do que ele.” Newton pensou em replicar: “Einstein?” Preferiu ficar quieto.

Em 2002, o respeitado jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung publicou uma matéria sobre ele. Título: “Newton ist brasilianer.” Era um trocadilho com o nome de Isaac Newton, o físico inglês: “Newton é brasileiro.”

As duas histórias mostram uma constante na vida de Newton da Costa, hoje aposentado, prestes a completar 79 anos, vivendo em Florianópolis “como se vivesse numa ilha da fantasia”. Ele é o pensador brasileiro mais respeitado mundialmente, reconhecido pelo desenvolvimento da lógica paraconsistente, hoje utilizada em diversos sistemas computadorizados. Mas é pouco conhecido no Brasil, onde há quem diga que nem sequer existe um filósofo brasileiro (ou então se chama de filósofo qualquer professor de filosofia).

Isso, no entanto, começa a mudar. Em março, a editora Hucitec lança as reedições de três de seus livros: Introdução aos Fundamentos da Matemática, de 1961, revisado em 1976; Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica, de 1979, considerado seu livro mais importante; e Lógica Indutiva e Probabilidade, de 1990. Newton da Costa, em entrevista ao Estado, também diz ter ficado contente com a citação de seu nome pelo cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite e engenheiro de formação, como uma das personalidades mais influentes do Brasil em enquete da revista Época.

O curioso é que Newton Carneiro Affonso da Costa nunca precisou deixar o País para desenvolver uma teoria de fama mundial. Nascido em Curitiba em 16 de setembro de 1929, ele, “mau aluno”, atribui ao ambiente familiar sua curiosidade e independência. A mãe era professora de literatura francesa; a tia, de literatura inglesa; outra tia, de literatura portuguesa. Um tio, Milton Carneiro, dava aulas de filosofia. O pai, funcionário público, gostava de matemática e do positivista francês Auguste Comte. O irmão mais velho de Newton, Haroldo, se tornaria geômetra.

“Na hora da refeição, só falávamos sobre esses assuntos”, lembra Newton. “Minha mãe proibia usar a primeira pessoa, ficar falando o que tinha feito durante o dia. Ela queria que se falasse sobre idéias, sobre política, filosofia, literatura.” Foi numa conversa com o tio que surgiu a dúvida que embasaria toda sua carreira: o que é o conhecimento - em especial, o conhecimento científico? A conversa era sobre a impossibilidade de uma pessoa provar que existe e que a existência não passa de ilusão dos sentidos. E um livro logo daria impulso a essas questões: Discurso do Método, de Descartes, que Newton leu aos 15 anos. “Li, reli, li e reli de novo.”

AUTORES

Brotava ali o filósofo da lógica, um caso raro entre intelectuais brasileiros de pensador metódico, sistemático. Ainda na adolescência, Newton descobriu os cinco autores que até hoje diz que mais o influenciaram: W.V. Quine, Rudolf Carnap, Karl Popper, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein. São todos da escola conhecida como “filosofia analítica”, que nas primeiras décadas do século 20 se dedicou a abordar questões filosóficas com auxílio da matemática. No Brasil, poucos foram os seguidores dessa linha de pensamento. O maior de todos é, sem dúvida, Newton da Costa, professor da Universidade de São Paulo por 30 anos.

Mas foi para a Universidade Estadual de Campinas que ele doou quase toda sua biblioteca de lógica e matemática, incluindo documentos importantes de sua carreira. Num cômodo - “meu cubículo”, como chama - de seu apartamento no centro de Florianópolis, onde vive há cinco anos, restam apenas os livros dos autores que mais o marcaram. Lá está o quinteto analítico, com destaque em número de volumes para Russell. Numa prateleira, vê-se uma montagem feita por alunos de uma foto de Newton diante de Russell - um encontro que nunca houve na realidade, embora fosse um dos maiores sonhos do brasileiro. “Russell foi, de longe, o autor que mais li, mesmo sem concordar com tudo. Era um gênio e escrevia como ninguém.”

Com quem, então, mais concordou? “Com Wittgenstein, sem dúvida. O Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus (1921), não dos outros livros.” Isso porque o pensador austríaco vislumbrava uma lógica com contradições, diferente da versão ortodoxa - e essa foi uma abertura fundamental para o conceito de “paraconsistência”. Russell, quando leu o tratado de Wittgenstein, decretou: “Ou você é um louco ou um gênio.” Wittgenstein também teve discussões agudas com Popper, outro autor a quem Newton deve muito, não só por uma filosofia da ciência que diz que “nenhuma explicação é suficiente”, mas também por livros como A Sociedade Aberta e seus Inimigos, uma crítica liberal ao marxismo.

Além do quinteto, estão ali autores como Kurt Gödel, o austríaco naturalizado americano cuja “teoria da incompletude” abalou os alicerces da matemática clássica em 1931, ao mostrar que um sistema de valores não pode ser consistente se se pretender completo. Sem ele, como sem outros grandes matemáticos como Henri Poincaré e F. Enriques, a lógica paraconsistente não existiria. As demais estantes do escritório trazem algumas centenas de livros que tratam justamente das idéias de Newton, além das traduções dos dez volumes que escreveu até agora. São livros em chinês, russo, romeno, alemão... Não há Mangabeira Unger que possa disputar com ele em termos de referência no exterior.

COMPLEXO

Mas não são apenas livros de filosofia que Newton conserva. Edições de Shakespeare e do Dom Quixote de Cervantes estão em destaque. A grande literatura e a música clássica - “Sou dos três Bs, Bach, Beethoven e Brahms” - são os prazeres culturais de Newton, que nas horas de folga também gosta de escrever poemas com o sobrenome dinamarquês da mãe, Eriksen. Ao lado, vê-se um livro em espanhol sobre as campanhas militares de Napoleão. “Leio tudo sobre Napoleão desde criança”, conta Newton. “Como toda pessoa com complexo de inferioridade, sou fã de Napoleão. Ele foi um gênio da estratégia.”

Como assim, complexo de inferioridade? Um pensador que construiu uma obra sólida num país periférico e ganhou reputação mundial, da qual não hesita em demonstrar orgulho, tem complexo de inferioridade? “Pois é, eu tenho. É como unha encravada, você tem e pronto. Uma vez conversei com um amigo psicanalista sobre isso e perguntei a ele: ‘Se eu não tivesse esse complexo, teria feito a minha obra?’ Ele respondeu: ‘Isso não dá para dizer.’ Então, se é assim, não posso fazer nada.” E tome livros sobre Napoleão.

Engenheiro formado, Newton começou a trabalhar na construtora do sogro, que lhe disse que em dez anos ele garantiria sua independência financeira. Newton não suportou ficar mais de um ano. “Dinheiro não importa para mim; nunca importou.” O desprendimento material não impediu esse professor com aparência de professor - que passa os dias dentro de casa lendo e escrevendo e dá uma palestra por semana - de ter uma vida confortável, de ter criado dois filhos, um economista e uma química, e de ser um avô carinhoso, que apresenta sorridente uma das netas, Isabela. Um pedestre que cruze por Newton da Costa numa dessas ruas do centro de Florianópolis com nomes de matemáticos (Praça Benjamin Constant, Rua Trompowski, etc.) não imagina que esse afável senhor de camisa social e calça de elástico seja um dos maiores lógicos do mundo.

O que tira Newton do sério é o atraso do Brasil, especialmente o desprezo ao trabalho intelectual. “Hoje você liga a rádio ou a TV e só ouve debilóides”, diz. Crítico do governo Lula, que acha que tem sorte de acontecer num período de prosperidade mundial, ele discorda em especial do pensamento socialista, citando Popper e economistas como Ludwig von Mises. “Só o capitalismo permite mobilidade social. Se a economia for impulsionada, tudo o mais se ajeita”, diz. “Mas agora o Lula é de centro-direita...”, ironiza, declarando-se de “centro-esquerda” e afirmando que votaria democrata nos EUA.

Em 1957, Newton se licenciou em Matemática pela UFPR; em 1960, se doutorou. Nessa época começou a se propor o desafio de desenvolver um sistema formal que levasse em conta as contradições, embora o nome “paraconsistência” só fosse surgir em 1974. O termo até então era “inconsistência”, e desde Gödel uma série de matemáticos mundo afora tentava chegar a essa teoria. Foi quando Newton tomou contato com a “lógica fuzzy”, também chamada de “difusa” ou “booleana”, que da mesma forma lida com estados intermediários entre o verdadeiro e o falso. Ela foi estruturada em 1965 por um professor da Universidade da Califórnia, Lofti Zadeh, cujos trabalhos Newton resenhou para publicações alemãs e brasileiras.

NOMES

“A fuzzy pode ser vista como uma versão mais específica da lógica paraconsistente”, afirma Newton. “Eu já provei isso.” O que ele alega é que sua teoria vai além de um modelo matemático; é um sistema filosófico, que discute conceitos a fundo e tenta, por exemplo, resolver problemas da dialética de Hegel. Newton também diz ter sido inspirado pela leitura de Marx e Freud. O termo “paraconsistência” foi sugerido por um amigo peruano, também filósofo da lógica, Francisco Miró Quesada. Significa “ao lado da consistência”, algo como “quase-consistência”. Na visão de Newton, a razão não pode provar nenhuma verdade absoluta, mas pode demonstrar a existência de uma “quase-verdade”, uma descrição mais próxima aos fatos. “Se explodir uma bomba atômica no prédio vizinho”, exemplifica, “é muito provável que você seja varrido para longe.”

Mas esse pragmatismo não significa que nosso conhecimento possa determinar muitas coisas com precisão. “Nem mesmo o contorno do seu corpo é definido. Alguém a anos-luz daqui só vê uma mancha no lugar onde você está. Você é uma mancha de elétrons, e há elétrons escapando de você o tempo todo.” Newton faz um gesto rápido com a mão. “Viu, acabei de pegar um elétron seu.” E solta outra de suas risadas, tão velozes quanto sua fala. Se você acha que um lógico deve ser uma pessoa fria ou impassível, é porque não conheceu Newton da Costa.

A palavra “paraconsistência”, assim como “fuzzy”, começou a ganhar vida própria de uns tempos para cá. É o destino de muitas teorias, como a Relatividade de Einstein - não raro explicada como “tudo é relativo”, o que o físico alemão jamais afirmou. No caso da paraconsistência, passou a ser utilizada como uma espécie de afirmação da irracionalidade, da rejeição ao método, da impossibilidade de qualquer forma de conhecimento. “Uma vez recebi abraços efusivos de um italiano, que disse que minha teoria tinha mudado a vida dele. Depois li o livro do sujeito e aquilo não tinha nada a ver com o que penso.”

SISTEMAS

Newton da Costa, afinal, é um defensor da razão, que define como união da faculdade lógica com o senso crítico; e diz que sua lógica complementa a clássica. “Em situações de comportamento padrão, a paraconsistente se reduz à lógica clássica.” É por isso que decisões - em computadores de robôs e sistemas de controle de vôo, para citar duas áreas que já utilizam lógica difusa e/ou paraconsistente - podem de fato ser tomadas.

Os processadores trabalham com um sistema binário, 0 (desativado) ou 1 (ativado), mas, graças a esses modelos matemáticos mais complexos, seguem funcionando mesmo quando recebem “inputs” opostos (“pare” e “avance”, por exemplo). A lógica paraconsistente não elimina a opção entre duas alternativas, mas possibilita que mais variáveis sejam avaliadas no processo de decisão, trabalhando com o que Newton chama de “probabilidade pragmática”. A experiência é que põe a razão à prova.

Newton critica os que usam a palavra lógica numa acepção falsa, como “Futebol não tem lógica” - significando que não é previsível. Para ele, a razão trabalha com a lógica ao menos para sistematizar as experiências. “O chato da irracionalidade é que ela não tem critérios”, resume, acentuando que seu trabalho é voltado para o conhecimento científico. Diz até que a indução faz parte da racionalidade: “Sem a indução não seríamos nada. Na pré-história, depois que o tigre-de-dente-de-sabre atacou um homem pela terceira vez, eles concluíram: tigres-de-dente-de-sabre são perigosos. E saíram correndo (risos). Sem isso não haveria racionalidade.”

Isso não significa que Newton não reconheça que haja eventos além da racionalidade. Por isso, diz não ser ateu e acreditar, “como Einstein, numa força da natureza”; e gosta de citar uma frase de Gabriel Marcel: “Filosofar é antes participar de um mistério do que resolver um problema.” Nem a ciência escapa. “Os resultados científicos são sempre aproximados”, escreve no livro Lógica Indutiva e Probabilidade. “A verdade é sempre parcial e provisória.” Mas a razão pode funcionar, sim; o conhecimento existe. “Nem eu mesmo imaginava que a lógica paraconsistente pudesse ter tanta aplicação no mundo real.” Hoje, nada parece mais lógico.

2 comentários:

Anônimo disse...

cara, fodão... n adianta ser efusivo, n precisa-se ser efusivo...


to curioso para conhecer mais deste senhor


economia no rio grande? vai pra santa catarina cabeça... haihaiuhaiua


abraço

Rudah A. L. disse...

É, meu caro... Do jeito que as coisas se configuram o jeito é SC mesmo!

Economia fica pra depois...

Só não entendi o teu comentário sobre a efusividade. Enfim...

Abraços!